Ela morava com a avó. Uma senhora que tinha uma voz estridente, que gritava “Suzaaanaaa” bem alto quando ela aprontava alguma (que não eram poucas) e a vila inteira sabia que Suzana estava a ponto de levar uma coça. Além da avó, também morava na casa uma empregada. Naquele antigo e extremamente louco sistema de quartinho dos fundos, que na década de 1980 era “comum”. A empregada de sua avó era o que a Suzana foi para mim, a irmã mais velha. Dava conselhos, levava a Suzana para tudo quanto lugar e a Suzana vivia em seu quarto, vendo TV e tomando Coca-Cola.
Mas
apesar de ter falado que ela morava com a avó, na verdade Suzana passava o dia
inteiro lá, fazia as refeições e tinha até um quarto com suas roupas e alguns
objetos pessoais, mas ela dormia na casa do pai que ficava no prédio ao lado do
prédio de sua avó. Seu pai era praticamente da idade da avó. Era magrinho como
Suzana e me lembro que fumava muito, vivia carregando pacotes de cigarro que
vez ou outra Suzana roubava. Ele era um homem de poucas palavras. Aliás, não
tenho nenhuma memória de ter ouvido a sua voz. Eu dormi uma ou duas vezes lá.
Era um quarto-sala, bem masculino, mas até que não era bagunçado. Tinha um
sofá-cama. E me lembro de ouvir em uma vez dormindo lá as explosões da obra do
metrô no lugar de uma vila antiga. Aquela estação nunca saiu do papel na
verdade. Coisas da corrupção do Rio. Também me recordo de duas coisas que me
chamavam atenção na casa do pai da Suzana. Ele guardava dinheiro em uma caixa
de isopor de Big Mac e na sala tinha um Atari, que jogávamos Pac Mac sem parar.
Ela também tinha um irmão bem mais velho. Já casado e com um bebê. Morava ali perto, cheguei a ir em seu apartamento algumas vezes e lembro dos móveis tipo TokStok anos 1980. Algo que só quem viveu essa época vai entender. Eram módulos que abriam em camas. O seu irmão era meio duro com ela. Ela aprontava muito e deixava a avó descabelada. Confesso que era engraçado. A sua avó era muito brava. Tinha uma vizinha de frente da sua avó que tinha um Chihuahua que latia horrores. Eu sempre achava esse cachorro igual a avó de Suzana.
Ninguém
falava de sua mãe. Nem Suzana. Acredito que tinha uma foto dela no quarto em que Suzana ficava na avó. Não sei o que aconteceu. Se fugiu. Se abandonou os
filhos. Se morreu. Ou enlouqueceu. Mas não se falava dela.
Tudo em
sua vida era um misto de mistério, loucura, uma vontade enorme de viver,
vivenciar, experimentar e ao mesmo tempo, Suzana, que tinha apenas 11 anos e se
achava adolescente, tinha no banheiro que ficava no quarto de sua avó,
praticamente um depósito de bonecas. Uma vez ela me mostrou esse acervo e eu não
acreditei. Eu era criança ainda, né? Aquilo era incrível! Todas as bonecas e
acessórios que você pudesse imaginar! Uma vez pegamos algumas dessas bonecas, e
carrinhos de bebê para elas e fomos brincar em frente ao meu prédio. Eis que
passam alguns meninos da idade da Suzana e ela imediatamente empurrou tudo para
mim. “Não sou quem está brincando de bonecas”, era o que ela quis dizer. Eu
respeitei. Afinal, era um segredo nosso.
Mas fora
esses momentos de querer brincar de boneca, Suzana tinha um sonho louco de
virar adulta. Seu maior desejo era menstruar. Ela era tão aficionada com isso
que uma vez uma amiga dela dormiu na casa da sua avó e quando passei lá para
visitar, estavam as duas meninas com os pés em uma bacia de água quente e avó
com a cara desconcertada. Quando ela foi à cozinha, as duas começaram a rir
pelos cotovelos. Disseram que tinham fingido ter menstruado. Tinha manchado um
absorvente com merthiolate e mostrado para a avó que ficou tão desesperada, que
botou as meninas com os pés na água quente. No mesmo dia a sua avó descobriu a
trama da menstruação falsa e lá foi a vila inteira escutar “Suzaaaanaaaa!”.
Ficou de castigo por vários dias!
Suzana
estudava em uma escola católica, acho que seu nome era Sagrado Coração de
Maria. Fui várias vezes em sua escola. Tinhas colunas grossas, um pátio aberto
e lindo. Parecia saído da antiguidade. Eu ansiava em estudar em um colégio
assim. Com freiras, restrições e uniforme. O meu era tido como escola
alternativa. Só tínhamos uma blusa como uniforme e podiam ser de diferentes
cores. Zero regra. É claro que Suzana queria estudar em um colégio igual ao
meu. Muitas vezes Suzana foi suspensa. Acredito que chegou a ser ou quase
expulsa.
Mas tinha
amigos lá, aliás muitos casinhos. Suzana fazia muitas festas em sua casa.
Sempre tinha a supervisão da avó e da empregada. Mas uma vez que a avó virava
as costas...ela aprontava. Fui em algumas dessas festas. Tinha música, luz e
fumaça. Acho era que seu aniversário. Só sei que voltei para casa
impressionada. Foi a primeira vez que participei de um “verdade e
consequência”. Claro, que era muita nova e mais olhava do que participava, mas
aquilo tudo era tão incrível e tão diferente que mesmo sendo mais inocente,
achava o máximo o que a minha “irmã” mais velha fazia.
Quando tinha festinha em minha casa, ela comia brigadeiros, bebia Coca-Cola - ela era viciada no refrigerante que tomava até no café da manhã – mas ficava mais reservada, de bate-papo com a Cida, a nossa empregada que viveu conosco por 30 anos, minha segunda mãe e que na época era jovem e Suzana gostava de conversar com ela. Lembro uma vez que a minha mãe deu uma bronca na Suzana lá em casa ou me falou que não devia brincar com ela na frente dela. Não me recordo ao certo.
Se você está pensando que ela era muito nova para aprontar isso e aquilo ou até mesmo achar vulgar o que Suzana fazia, eu até hoje acho Suzana uma revolucionária. Isso tudo sem ela saber que era. Ela tinha essa ânsia de virar adulta, de gargalhar, de fazer as coisas que era tolhida o tempo todo. É o famoso joie de vivre. Nunca vi nada tão igual e intenso.
Depois de
2-3 anos ao seu lado, eis que a minha família compra um apartamento maior e em
Laranjeiras. Deixamos a vila de Botafogo e com a saída, os meus encontros com a
Suzana foram espaçando. Não tinha esse negócio de se falar o tempo todo. Não
tinha celular, não tinha internet. A última vez que a vi, ela foi me visitar
depois da escola. Suzana tinha mudado de colégio e este ficava no Catete, perto da
minha casa. Colégio de padre que também cheguei a ir em algumas festas juninas
com ela e lembro que estava não indo muito bem na escola.
Nunca
mais ouvi falar de Suzana. Eu também fui entrando na adolescência, fazendo
novas amizades e vivenciando outras coisas que aquele mundo da vila parecia não
caber mais na minha vida. Na época cheguei a ouvir que ela tinha conhecido um
traficante e que tinha ido morar na favela. Ouvi dizer que engravidou também.
Enfim, acho que nunca vou saber seu destino e se conseguiu experimentar e viver
a vida como gostava. Sempre penso como seria a Suzana dos dias de hoje em seus
quase 50 anos de idade. Como ficaram seus laços com a família? Assim como a sua vida misteriosa, o seu desaparecimento em minha vida também é cercado de perguntas. Não tenho seu sobrenome. Não tenho contato com ninguém que possa saber de sua vida. Onde estará? O que aconteceu com a sua vontade de viver.
Suzana
tinha apenas 11 anos de idade, mas parecia uma mulher cheia de experiências,
vivida, praticamente uma adulta. Ela flertava com esse desejo constantemente.
Virar adulta. Na cabeça dela o ato de menstruar era algo libertador, de abrir
as portas da vida adulta que tanto ansiava. Neste último dia em que a vi quando
foi me visitar no auge dos seus 14 anos, ao sair do meu apartamento estávamos
eu e a Cida na porta esperando ela entrar no elevador que ficava em um longo
corredor. Quando ela se distanciou um pouco da porta da minha casa, de repente
ela virou de frente para a gente e abriu o zíper da sua calça jeans e baixou
rapidamente a calcinha para mostrar o absorvente gritando: “Olha aqui ó! Eu
menstruei!”.
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